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Poemas precisam rimar?

Quando falo sobre o aspecto sonoro de um poema, alguns pensam que me refiro necessariamente às rimas, mas não me limito a elas. Aqui, o assunto é a melopeia, que são os aspectos sonoros do poema, segundo Ezra Pound.

De acordo com o crítico norte-americano, literatura é a linguagem carregada com o máximo de significado possível. A melopeia (ritmo e sonoridades), a fanopeia (imagens) e a logopeia (“a dança do intelecto entre as palavras”) são os três elementos que compõem um bom poema e que atribuem novos significados às palavras. 

Mas hoje focaremos na pergunta do título, que diz respeito apenas à sonoridade (melopeia); e, para respondê-la, precisamos voltar um pouquinho na história.

Poemas e melodias: um breve histórico 

Eu sei que muitos associam a poesia a um mar de chatices que só importam aos acadêmicos ou a um sem-fim de palavras que versam sobre o banal, mas os povos antigos cantavam e dançavam com ela. 

De acordo com Segismundo Spina, doutor emérito da USP, a poesia lírica “sempre se manteve associada à música e à coreografia”. Havia poemas com refrães e poemas sem refrães, mas, até a Idade Média, poesia e música ainda eram uma anavar kaufen coisa só: “a poesia trovadoresca era uma poesia lírica por excelência, isto é, feita para ser cantada, com acompanhamento instrumental”, diz o professor em sua vasta obra sobre a cultura literária medieval.

Note o que o autor ainda diz, em seu ensaio “Na madrugada das formas poéticas”:

“A poesia primitiva conheceu a rima na acepção ordinária que temos hoje? É difícil uma resposta positiva, pois poderíamos atribuir ao acaso as consonâncias que se verificam em fins de versos consecutivos na poesia pré-letrada.”

Por mais que hoje a maior parte das músicas use rimas para criar efeitos melódicos, nem sempre foi assim. Na verdade, a rima não era recorrente na poesia clássica, mesmo sendo feita para o canto.

Como algo pode ser musical sem rimas?

Pela forma como os versos combinam sílabas.

Na Grécia, era a combinação de sílabas longas e sílabas breves que gerava a cadência. Mais tarde, as rimas se tornaram mais comuns, mas ainda havia a cadência de sílabas fortes e fracas, sistema que usamos hoje em nossa língua.

Como? Você deve ter aprendido na escola sobre sílabas tônicas. A tônica da palavra “sílaba” é “sí”: essa é a sílaba forte; “la” e “ba”, nesse caso, são sílabas fracas. Tudo isso gera ritmo à fala e, no caso dos atuais poemas, à leitura.

Mais tarde, quando a rima se tornou comum, havia trovadores que compunham versos brancos como um “desafio”. Segundo Spina, por mero virtuosismo técnico. (E você aí achando que foi a Semana de 22 que aboliu a métrica e as rimas.)

No século XIV, o trovador Guillaume de Machaut “divorciou” a poesia da música. Ele dizia que a letra era superior à melodia; por isso, precisava se sustentar por si só, mesmo que continuasse a ser cantada. Então foi cada uma para um lado: uma pessoa fazia a letra; outra, a música.

A forma mais simples de fazer algo escrito soar como música aos nossos ouvidos não é a rima, mas sim a cadência. É o que era feito nos salmos bíblicos, por exemplo, e continua a ser feito nos dias atuais. Quer ver como?

Cadência: o ritmo sem rima

Veja alguns exemplos de versos bem conhecidos, dois versos que rimam e dois versos que não:

“Água mole em pedra dura
Tanto bate até que fura”

“Batatinha quando nasce
Se esparrama pelo chão”

Aqui você não vê apenas rima, você vê cadência e métrica: cada um dos versos acima possui sete sílabas poéticas, bem como acentuações na terceira e na sétima sílabas. Ou seja, as sílabas fortes desses versos são sempre a terceira e a sétima, o que faz com que soe de forma uniforme e musical, mesmo não havendo ninguém cantando:

“Água mole em pedra dura
Tanto bate até que fura”

“Batatinha quando nasce
Se esparrama pelo chão”*

Para entender melhor o ritmo característico da poesia, vejamos alguns poemas inteiros que escolhemos para exemplificar.

2 poemas com bom ritmo, mas sem rimas

1. O Poço, de Gerardo Mello Mourão

Todo homem é uma ilha (arquipélago às vezes) sempre pélago:
todo homem é um poço e neste poço
ninguém mergulha: — o caminho
do fundo do poço é um labirinto.

Chega-se a ele — chegar-se-ia — 
por uma gruta e ali ninguém
possui a chave o abre-te-sésamo
dessa caverna de Ali Babá.

Quem abriria os seus baús? Pois algum dia
Todo homem foi algum pirata
Todo homem, alguma vez, náufrago foi
no poço do mar
com sua proa seu galeão.

Jazem ali cobertos de águas
velhos cadernos jamais escritos
talvez escritos — lidos jamais
de sua história suas vergonhas
glórias de sonhos e pesadelos.

Jazem histórias jazem cardumes dos outros homens
tempos e espaços de encruzilhada
também mulheres — muitas — algumas
uma talvez também um poço.

Homem nenhum sabe a história
sabe as histórias de outro homem.

Todo homem é um poço
se alguém chegar ao fundo dele
pode encontrar o ouro e a lama
baú de ossos com seus destroços:

levanta a tampa — ali ainda
sua bravura nunca cumprida
sua tristeza sua alegria:
não é preciso saber de quem
ali ainda estremecera — ainda dói —
o rosto mudo — pureza pura
de um pobre herói.

2. Galo galo, de Ferreira Gullar

O galo
no saguão quieto.

Galo galo 
de alarmante crista, guerreiro, 
medieval. 

De córneo bico e 
esporões, armado 
contra a morte, 
passeia.

Mede os passos. Pára. 
Inclina a cabeça coroada 
dentro do silêncio: 
— que faço entre coisas?
— de que me defendo?

Anda.
No saguão. 
O cimento esquece 
o seu último passo. 

Galo: as penas que 
florescem da carne silenciosa 
e o duro bico e as unhas e o olho 
sem amor. Grave 
solidez. 
Em que se apóia 
tal arquitetura?

Saberá que, no centro 
de seu corpo, um grito 
se elabora? 

Como, porém, conter, 
uma vez concluído, 
o canto obrigatório? 

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço 
donde o canto rubro escoa.

Mas a pedra, a tarde, 
o próprio feroz galo 
subsistem ao grito. 

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece — apesar 
de todo o seu porte marcial — 
só, desamparado, 
num saguão do mundo. 
Pobre ave guerreira! 

Outro grito cresce 
agora no sigilo 
de seu corpo; grito 
que, sem essas penas 
e esporões e crista 
e sobretudo sem esse olhar 
de ódio, 
                não seria tão rouco 
e sangrento.

                     Grito, fruto obscuro 
e extremo dessa árvore: galo. 
Mas que, fora dele, 
é mero complemento de auroras.

Conclusão 

Todo poema precisa de ritmo e melodia, mas nem todo poema precisa rimar ou seguir uma métrica fixa. Os poemas acima usam outros recursos, que serão abordados em profundidade em outros artigos. Você deve ter percebido que há uma rima ou outra, aqui e ali, pois é natural em nossa língua, mas sem que esse seja o recurso que carrega o ritmo.

Existem ainda outros aspectos envolvidos na melopeia, tal qual a sonoridade das palavras e os efeitos que provocam. De acordo com Massaud Moisés, crítico e teórico literário, o ritmo é composto por três aspectos: melódico, emotivo e semântico.

No aspecto melódico, temos as rimas, a métrica, a cadência, entre outros recursos comuns aos poemas. Quando encadeamos uma sequência de duas sílabas fracas e uma forte, por exemplo, temos um anapesto — esse é um pé métrico. Os sons das palavras também são capazes de gerar efeitos interessantes aos nossos sentidos, como pode ser entendido neste artigo do Brian Belancieri sobre o poema Ozymandias, de Percy Shelley.

Você encontra mais informações sobre o assunto no livro Criação Literária, do Massaud Moisés, que recomendamos a todo aspirante a poeta. E, em breve, publicaremos um artigo falando da melopeia de forma abrangente.

*Dizem que o verso original é “Espalha a rama pelo chão”, mas, nesse caso, a métrica não faria sentido, tendo oito sílabas poéticas. Na verdade, o verso original é “Deita a rama pelo chão”, que é um heptassílabo. Ou seja, métrica perfeita, tanto na versão original quanto na versão que é mais popular atualmente.

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